Desde que o livro Dom Casmurro, de Machado de Assis, foi lançado, no ano de 1900 e até os dias atuais, persiste a grande pergunta que tem mobilizado literatos de todas as gerações desde então: Seria Capitu culpada ou inocente pela acusação de adultério, que lhe é impingida pelo seu marido e narrador do livro, Bentinho, o Casmurro que dá título à obra.
A grande curiosidade que os estudiosos têm, além dessa (da culpa ou inocência de Capitu) é a de saber se Machado teve a intenção deliberada de deixar o leitor nessa dúvida, que realmente parece uma sinuca de bico, não apenas para aqueles de fala portuguesa, como também para os demais, visto que a obra se tornou mundialmente conhecida, exatamente por essa questão.
Em minha modesta condição de psicanalista ( e não de literato, portanto), ocorre-me aqui deixar registrado a declaração que Freud fez, em uma de suas conferências, realizada em 1914: a de que uma das grandes feridas narcísicas da humanidade é a de tomar conhecimento de que a razão humana não é norteada pelo consciente, e sim pelo inconsciente.
Em outras palavras: desde o advento da psicanálise, sabe-se que o que guia, o que dirige, o que é decisivo para as deliberações que o homem faz na vida, embora lhe pareça planejado e calculado, possui, na verdade, motivações inconscientes.
Isto posto, após uma cuidadosa releitura de Dom Casmurro, a mim me parece que Machado de Assis, por tudo aquilo que faz transparecer nas linhas e nas entrelinhas do livro, teve a intenção “consciente” de colocar Capitu no banco dos réus.
Para mim, sempre foi a intenção do autor mostrar a traição da personagem. Mas, como tudo em sua obra foge aos padrões e lugares comuns, Machado construiu de forma espantosamente criativa todo o enredo do romance. A dúvida que restou, desde então, a meu ver, sempre foi por conta dos leitores, e não do autor.
Acontece que, conforme dissemos acima, de acordo com a psicanálise o homem apenas tem a ilusão de que faz as coisas conscientemente. Suas reais motivações, no entanto, estão no inconsciente.
Portanto, a despeito de toda a sua genialidade, nem mesmo Machado de Assis fugiu à essa regra. Ele, obviamente, pensou que planejou conscientemente o romance. Mas, como em todos os mortais, suas motivações, ao escrever Dom Casmurro, foram inconscientes.
Assim sendo, mesmo que não quisesse, Machado transferiu para o personagem Bentinho, muito de suas dúvidas, temores, ambiguidades e incoerências. O que, na verdadade nos permite ficar sabendo que, mesmo aquilo que o escritor Machado de Assis não diria em hipótese alguma, acaba dizendo pela boca (ou pena) de Bentinho.
Ora, excusado seria dizer que essas mesmas dúvidas, temores, ambiguidades e incoerências também estão presentes no imaginário de todos nós, leitores de sua obra. O que faz-nos concluir que a “consciência” inconsciente de Machado, ao planejar e escrever o livro, desperta em cada um de nós a dúvida in-consciente sobre Capitu ser ou não culpada.
Finalizando este pequeno artigo a mais sobre uma polêmica secular, resta dizer, para não fugir aos propósito de tudo aquilo que escrevo neste site: Que pena que Bentinho não tenha tido a grandeza necessária para perdoar Capitu.
Teríamos tido um livro talvez menos polêmico e muito menos famoso. Mas um livro cuja leitura o leitor terminaria edificado. Um livro em que os personagens principais não acabariam vivendo tânatos - pulsão de morte; e sim eros - pulsão de vida.
Tenho visto casamentos em que a traição de um dos cônjuges quebrou mesmo para sempre a taça de cristal. Mas também tenho visto outros, onde ocorrem o arrependimento de um e o perdão de outro.
Nestes, além da taça se cristal ser reconstruída de uma forma muito mais bonita, o vinho que se serve nela é de qualidade muito superior.
Toni Ayres